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Livro de Conceição Evaristo traz homem cuja função é fecundar as mulheres

Posted by Folha de S. Paulo on

A escritora mineira Conceição Evaristo

Decididamente Conceição Evaristo é uma rainha. No porte, na fala, na liderança, na generosidade. Conceição nos representa.

“Canção para Ninar Menino Grande”, novela que acaba de publicar, dá continuidade a sua obra, dedicada à negritude, em muito também difere. Insisto na palavra novela, pela admiração que essa prática literária merece.

Ainda que pouco praticada, são novelas diversas das mais importantes obras de nossos grandes autores: “O Alienista”, de Machado de Assis, “A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água”, de Jorge Amado, as maravilhas de “Corpo de Baile”, de Guimarães Rosa.

Da mineirice em comum com Guimarães, Conceição traz a dicção peculiar com ausência de reflexivos como em “regozijou”, a eventualidade de algum traço fantástico em meio ao cotidiano e, sobretudo, uma espécie de carinho e simpatia pelos personagens que ficam, passam a fazer parte de nosso universo.

Aqui é o personagem Fio Jasmin, o atraente rapaz negro que carrega uma única frustração, a de não ter podido fazer o papel de príncipe na escola por ser negro. Merece atenção o nome do sedutor: um fio penetra, passa, atravessa, continua, segue adiante e junta; o jasmim perfuma.

A função principal desse homem é fecundar as mulheres, gerar filhos em moças bem criadas, todas com nome e sobrenome de famílias.

Neide Paranhos da Silva, cujo filho é concebido na época de frutos cheirosos como as laranjas; Pérola Maria, que Fio escolheu como mulher no civil e no religioso e que dele esperava apenas a garantia de engravidar; Juventina Maria Perpétua, para quem homens “não passavam de meninos grandes, que viviam agarrados às saias das mulheres em busca de proteção”.

Outras mais se sucedem, mulheres que não têm medo do prazer, com filhos que brincam juntos, indiferentes a quem é o pai.

Juventina, a Tina, é a mulher que compõe a partitura da “Canção para Ninar Menino Grande”. É a personagem que une as mulheres do romance, tornando-as “cúmplices e testemunhas” das histórias de amor, felizes ou infelizes.

Fio Jasmim poderia ser mais um dos cafajestes que atravessam as vidas das mulheres, afinal o pai, como ele ferroviário, significativamente chamado Máximo Jardim (e aqui fica impossível não lembrar de “Recado do Nome”, em que Ana Maria Machado analisa os nomes na obra de Guimarães Rosa) lhe ensinara que dores não vazam dos olhos dos homens.

Mas não o é, e se fosse tornaria a narrativa banal. Está aí a beleza do relato de solidariedade e amizade entre mulheres, na aceitação da importância da paixão, do sexo e daquilo que só as mulheres podem fazer, parir seus filhos.

Apenas ao final da novela, reaparece, de algum modo, discretamente, a escrevivência. Essa última obra de Conceição Evaristo é uma ficção diferente, mais solta em sua mestria ao lidar com o ficcional, em se apossar de tons de fábula que resgatam temas eternos e os modificam, em beirar o inevitável fantástico presente no dia a dia.

A autora permanece, sim, segura de suas convicções, como a importância da sororidade, da certeza de como é possível ser livre mesmo que o amor provoque dor no peito.

É a arte, então, como a música de Tina, que se mostra capaz de transformar a imaterialidade dessa dor estranha em acordes capazes de acordar ou adormecer seres humanos, bichos, plantas, toda a natureza, como nos diz Conceição.

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