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Emily Brontë, a curiosa vida da autora de ‘O Morro dos Ventos Uivantes’

Posted by Tamara Nassif (Revista Veja, publicado em 15 jan 2021) on

emily bronte

Clássico da literatura inglesa ainda é envolto em mistérios quando o assunto é sua autora

Na Inglaterra de 1818, há pouco mais de dois séculos, a Revolução Industrial engatinhava, exércitos respiravam após sucessões de violentos conflitos na Europa e mulheres precisavam assinar obras literárias sob pseudônimos masculinos. Também foi o ano em que Emily Brontë vinha ao mundo e começava a deixar sua pegada na trilha da literatura mundial. Poetisa e autora do pop O Morro dos Ventos Uivantes (1847) – assinado sob o nome de Ellis Bell – a jovem inglesa de Yorkshire deixou pouquíssimos registros de seu talento para escrita; o clássico gótico, aliás, é seu filho único. E, com ele, vira a mexe, Emily retorna aos rankings de best-sellers, em pleno século XXI. Caso da lista de VEJA, na qual o título fechou 2020 como o sétimo mais vendido no Brasil.

Há alguns anos, o clássico ganhou um empurrão de Crepúsculo, série de livros teen de Stephanie Meyer. Isso porque O Morro dos Ventos Uivantes é a obra favorita da dramática protagonista Bella Swan, predileção que fez com que jovens adolescentes que nunca ouviram falar do clássico corressem para adquirir seu exemplar. O lançamento bem-sucedido de Sol da Meia-Noite em 2020, também de Stephenie, que observa a mesmíssima trama de Crepúsculo, mas a partir do ponto de vista do, por assim dizer, mocinho, o vampiro Edward, pode ter dado um novo impulsiono às vendas de Emily: no ano passado, foram mais de 46.000 cópias vendidas da obra no país.

Mais trágico que o romance açucarado de Edward e Bella, a trama de Brontë narra a história de amor entre os irmãos adotivos Catherine e Heathcliff, ambos em muito distantes dos ideais pueris românticos que arrancam suspiros por aí. Ela é obstinada e egoísta, ele, grosseiro e atroz. O noivado de Cathy com Edgar Linton, rival de Heathcliff, é a gota d’água para que o “mocinho” deixe a fazenda Morro dos Ventos Uivantes, a qual retorna, mais tarde, rico e com sede de vingança por ter sido privado da presença de sua amada.

É difícil imaginar o que teria achado a jovem inglesa ao ver sua estimada e trágica história de amor ladeada a uma narrativa de vampiros – afinal, Drácula só surgiu em 1897, quarenta anos depois de O Morro dos Ventos Uivantes. Mas, mais do que uma questão cronológica, Emily é um ponto de interrogação: tal qual suas peças literárias, existem pouquíssimos registros sobre ela por aí. Sem nunca ter se casado, a quinta filha dos seis descendentes do casal Patrick Brontë e Maria Branwell foi professora aos 20 anos, mas abandonou a profissão quando começou a ter problemas de saúde causados pela exaustiva jornada de trabalho de 17 horas diárias. O que se sabe sobre sua personalidade, no entanto, advém de escritos da irmã mais velha Charlotte Brontë, autora de Jane Eyre sob o pseudônimo de Currer Bell.

Ao que parece, Emily era excêntrica, reclusa, introvertida, não muito ligada a amores românticos e preferia a companhia de seu cachorro a de outras pessoas. “Embora seus sentimentos pelos que a cercavam fossem benevolentes, relações com eles ela nunca procurou, nem, com poucas exceções, as experimentou”, escreveu Charlotte em prólogo para a edição de O Morro dos Ventos Uivantes de 1850. Duzentos anos de dúvidas solidificaram a imagem da jovem de Yorkshire como uma “esquisitona”, embora uma biografia escrita por Claire O’Callaghan busque reabilitar essa reputação. Segundo a pesquisadora, Emily poderia ser tímida e reservada, mas não merecia o retrato que lhe é atribuído.

Essas imagens ‘fundadoras’, baseadas em opiniões alheias, foram ampliadas, retrabalhadas, dramatizadas e amplificadas ao ponto de se tornarem míticas até hoje”, disse Claire ao jornal britânico The Guardian. Emily foi descrita a partir de diversos ângulos, geralmente negativos: ora era “uma solteirona séria, antiquada e odiosa que vagava pelas charnecas de Yorkshire sozinha com seu cachorro”, ora “uma garota-mulher dolorosamente tímida e socialmente desajeitada que ficava doente sempre que saía de casa”. Há ainda a ideia de que ela era “teimosa e desafiadora que voluntariamente conteve diversos males físicos e mentais”, ou “uma alma etérea frágil demais para suportar o mundo real”. Claire argumenta que os mitos perpetuam uma ideia de que ela era “estranha” de forma hostil e estigmatizante, a ponto de enterrarem a verdadeira Emily por debaixo de um tapete de opiniões incertas.

É dessa reputação que veio o apelido “a mais estranha das três estranhas irmãs Brontë”, cunhado pelo poeta Ted Hughes em referência às bruxas shakespearianas da peça Macbeth, que profetizavam destinos dos personagens principais do enredo. O trio era formado por Charlotte, Emily e a caçula Anne Brontë, dona de um dos primeiros livros feministas da história, A Senhora de Wildfell Hall. Mas, de profetas, as irmãs só tinham o espírito de vanguarda: em suas obras, protagonistas femininas ensejam uma independência impraticável para a época de 1800 e bolinha. É de Jane Eyre, inclusive, a célebre frase “Se tivesse asas e liberdade, voaria mais alto que as nuvens”.

Com a precoce morte da mãe, vítima de um câncer, as meninas foram criadas pelo pai, um pastor protestante que conseguiu sair da pobreza graças a uma patente inteligência e habilidade para escrever. Ao que se sabe, só dedicou atenção e recursos para educação do filho homem, deixando as garotas sob a responsabilidade de internatos de caridade. Viviam isolados em um povoado de poucos recursos. Apesar de serem preteridas pelo pai, as jovens sempre foram incentivadas por ele a ler e escrever, algo raro para a época. Emily escreveu sua obra-prima aos 28 anos de idade, ao que se sabe, virgem e sem nenhum grande romance que a pudesse ter inspirado — a não ser pelo que ouvia por ai.

Um olhar psicanalista, talvez anacrônico, diria que Emily projetou em Cathy o que gostaria de ter feito na vida real, desde a liberdade para dar respostas atravessadas à possibilidade de viver amores tragicamente intensos – e talvez o tivesse, não fosse sua precoce morte aos 30 anos, em 1848, vítima de um estado de saúde fragilizado por uma constipação grave, tuberculose e relutância em aceitar ajuda médica. Em vida, Emily viu O Morro dos Ventos Uivantes vender apenas duas cópias. Mal imaginava ela que seu único livro entraria para o cânone dos clássicos da literatura inglesa — e se tornaria o livro de cabeceira de uma garota apaixonada por um vampiro.

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