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‘Sobrevivendo no Inferno’, dos Racionais MC’s, vira livro e vai cair no vestibular

Posted by Guilherme Sobota, O Estado de S. Paulo on

Racionais MC's: Edi Rock, Ice Blue, KL Jay e Mano Brown Foto: Klaus Mitteldorf

Entrevista com Edi Rock

Guilherme Sobota, O Estado de S. Paulo

23 Novembro 2018

“60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial.” A frase dita pelo Primo Preto no começo de Capítulo 4, Versículo 3 marca o “início” da jornada que os Racionais MC’s, maior banda de rap do Brasil, submetem ao ouvinte em Sobrevivendo no Inferno. O disco de 1997 foi selecionado para o vestibular da Unicamp 2020, por sua poesia contemporânea, e agora virou livro pela Companhia das Letras.

Em 1997, os Racionais já eram um dos mais importantes grupos de hip hop do Brasil após o reconhecimento que o primeiro disco cheio, Raio X do Brasil (1993), proporcionou. Mas com Sobrevivendo no Inferno, e a marca de 1,5 milhão de cópias vendidas, veio a projeção nacional, o trânsito do rap entre classes sociais, aparições mais frequentes na mídia e turnês internacionais.

Talvez a principal inovação do grupo fosse “a maneira de tematizar o cotidiano periférico” de igual para igual, como diz o professor da Universidade de Pernambuco, Acauam Oliveira, autor do prefácio da edição em livro. Mas há outras que aparecem no Sobrevivendo: “agressividade da postura presente nas letras e nos arranjos, elevado grau de contundência das narrativas, carregadas com o senso de urgência daqueles que estão literalmente em meio a uma guerra”.

O texto reúne ainda opiniões de outros especialistas, como Francisco Bosco, Tiaraju D’Andrea e Maria Rita Kehl, para aprofundar o impacto sem igual que o disco teve na cultura brasileira, a ponto de criar uma subjetividade para o morador da periferia que finalmente encontrava uma identificação.

Neste sábado, 24, Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay sobem ao palco do Credicard Hall, na única apresentação do grupo no ano, num raro show com banda e uma retrospectiva da carreira (prévia da turnê que deve ocorrer em 2019 para celebrar 30 anos de trabalhos).

Sobre o livro, o disco e o futuro dos Racionais, Edi Rock falou quando recebeu a reportagem no escritório do Twitter, em São Paulo, na semana passada.

Racionais pré-‘Sobrevivendo’

O rap. Eu falo Racionais, mas o rap antes do Sobrevivendo no Inferno eram as periferias do Brasil, era onde a mensagem chegava. A gente saiu de São Paulo com Raio x do Brasil (1993), e começou a fazer shows nas periferias. A partir do Sobrevivendo saímos para fora do Brasil. Começamos a cantar para várias outras classes. Começamos a cantar nos Jardins. A nossa vida inteira foi formada na periferia, nos cantos de São Paulo. Pós-Sobrevivendo, começamos a ir além da ponte.

Relação com a mídia

Nesse momento, o grupo passou a ter uma assessoria de imprensa, uma preocupação de divulgar o trabalho corretamente nos veículos de comunicação. Tem esse momento de organização, por onde veio o relacionamento com a mídia escrita principalmente, e não com a visual, digamos. Naquela época, não tinha internet, estava bem no começo. A gente tinha uma boa relação, pelo que lembro, com o Notícias Populares, com o Estadão, Folha de S. Paulo. E outros. A gente fazia o que eu estou fazendo aqui com você agora. Relação tranquila, natural, estamos divulgando nosso trabalho.

Andar armado na época do disco (após sofrer ameaças)

Houve uma época que a gente era ameaçado, então tinha que andar ligeiro, andar esperto. A gente não queria pagar um segurança oficial, porque tinha que ser polícia. Por isso que cada um tinha posse e porte de arma. E só dava merda. Brigar no trânsito era motivo para pegar (a arma). Sei lá. No Sul, uma vez, teve um desentendimento entre o pessoal contratante de um show e a gente. Nosso pessoal foi maltratado, deu uma puta treta, ficou nós contra os caras do baile, dentro do ônibus, mó pressão. Acabou que o show foi cancelado, um dos nossos integrantes na época levou uma coronhada, teve que ir para o hospital. Eles queriam agredir o KL Jay. Todo mundo entrou dentro do ônibus depois do bate-boca, uma confusão. Quando o busão está fazendo a volta no quarteirão, os caras encheram de bala. Vários tiros. Todo mundo assim: “abaixa, abaixa”. Essa é uma das fitas. Sempre dá merda. A partir do momento que a gente parou de andar armado, parece que o ferro, a pólvora, se libertou das entranhas da Terra (risos).

Mudanças na abordagem das músicas

A gente falava meio que como dono da razão. Como ditador. “Não faça isso, não faça aquilo”. Passamos a consertar o discurso. Isso rolou antes do Sobrevivendo no Inferno. Aqui a gente já estava encontrando o dialeto, a linguagem direta. Na verdade, no Nada como um Dia Após o Outro Dia (2002), a linguagem é mais rua ainda. Sobrevivendo ainda era a transição. É um disco mais político. Sobre a época mesmo, da briga pelos direitos humanos, falando da chacina no Carandiru, tudo isso. Mas vejo uma transição. Achamos o caminho no Chora Agora e Ri Depois (o disco citadoa cima). Era aquilo que agradava a gente, foi ali o momento “agora sim, som da hora”. O Sobrevivendo ficou bom também. Mas foi uma passagem traumática. Morreu gente.

Brasil 2018

As pessoas se desesperaram. Como continuar na quebrada? “Precisamos de um capitão do mato”, é isso que está acontecendo. O povo elegeu o capitão do mato. Então, se prepara. Aqueles que são e continuam lá, vão continuar sofrendo, vão continuar morrendo. A urgência é discutir sobre isso. Eu vejo em colocar isso no meu trabalho, na minha música. Colocar “de onde você veio, para onde você vai, o que você quer”. O desespero e a violência venceram novamente. Apareceu um cara falando que era o salvador da pátria, acreditaram, até porque o outro estava desacreditado, no descrédito. Somos políticos, o que fazemos no dia a dia, o rap é político. O rap briga pelos direitos humanos, pelo direito de ir e vir, pelo direito de ser livre, porque aprendemos assim. Ser livre e ser quem você é. Lutar pelo direito de ter sua opinião. Chegou a hora de discutir: o que queremos, o que precisamos na realidade? Se é se amar, pensar na paz.

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